Pesquisadora brasileira alerta para perspectiva reducionista da alimentação e incentivo ao consumo desses produtos
A possibilidade de reformular alimentos ultraprocessados para torná-los mais saudáveis voltou a ser tema de discussão entre pesquisadores americanos e brasileiros em um fórum da revista científica Cell Metabolism. O argumento ressurgiu em um comentário dos pesquisadores Deirdre Tobias e Kevin Hall, e teve resposta da epidemiologista Priscila Machado, em colaboração com outros três colegas australianos.
A ideia de que é possível reduzir os efeitos nocivos desses produtos não é nova e já vem sendo muito utilizada pela indústria de alimentos ultraprocessados. Parte dessa estratégia consiste em destacar a adição ou redução de um determinado nutriente, como “com fibras”, “rico em vitaminas” ou “menos sódio”, levando o consumidor a acreditar que está comendo um alimento mais saudável.
Os ultraprocessados são formulações derivadas de alimentos, contendo pouco ou nenhum alimento inteiro e adicionados de corantes, aromatizantes, emulsificantes e outros aditivos. O ultraprocessamento destrói a matriz alimentar e exclui compostos bioativos (protetores da saúde), altera a biodisponibilidade de nutrientes (deixando o organismo menos propenso a absorvê-los), reduz a sensação de saciedade (são consumidos em maior quantidade) e até impacta a forma como comemos (horários e locais das refeições, por exemplo).
“Frequentemente, as tentativas de reformulação de ultraprocessados focam em ingredientes específicos, mas não demonstram preocupação com a qualidade das substituições”, alerta Priscila Machado, que é integrante do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo e atua na Universidade Deakin, na Austrália. “Açúcar, por exemplo, é trocado por adoçantes artificiais, o que não traz ganhos à saúde”, exemplifica. Além disso, existe um limite tecnológico para a redução de alguns nutrientes: um ajuste na fórmula pode exigir a inclusão de ainda mais aditivos químicos para manter o sabor do alimento e o baixo preço de produção.
A ideia de reformular alimentos ultraprocessados para torná-los menos nocivos se insere no chamado nutricionismo, termo criado pelo pesquisador australiano Gyorgy Scrinis para definir uma perspectiva reducionista da alimentação, destacando nutrientes isoladamente. Um biscoito recheado sabor morango, mas com vitaminas adicionadas, passa a ideia de um produto nutricionalmente rico quando, na realidade, não contém nenhum traço da fruta.
Os pesquisadores alertam que a reformulação desses produtos traz outra possibilidade danosa, que é a de legitimar e até promover o consumo de alimentos ultraprocessados com base nas alegações das embalagens.
Existe um robusto conjunto de evidências científicas que relacionam o alto consumo de ultraprocessados ao aumento dos indicadores de obesidade infantojuvenil e doenças crônicas não transmissíveis. Para a epidemiologista Priscila Machado, a saída é reduzir o consumo desses produtos ao mínimo possível, o que só pode ser feito se a questão for analisada para além dos nutrientes. “O aumento no consumo de ultraprocessados é um reflexo dos nossos sistemas alimentares. Isso inclui as práticas agrícolas (atualmente voltadas para a produção de commodities), a falta de regulamentação das iniciativas da indústria de alimentos e até a interferência da indústria nos poderes públicos”, analisa Machado.
A cientista acredita que, em vez de ultraprocessados, inovações tecnológicas poderiam ser usadas para tornar alimentos minimamente processados ou processados mais convenientes e baratos. Um exemplo desta tendência são as saladas, massas, queijos e iogurtes não ultraprocessados e prontos para consumo: são alimentos já vendidos em supermercados e restaurantes do mundo todo.
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